domingo, 4 de janeiro de 2009

Praia do Mundo

Boiando num imenso e aquoso azul, as partes do meu corpo são puxadas e empurradas por cada ondulação, cada turbulência, como num estado corporalmente inconsciente. Lentamente, minha consciência desperta, e passo eu mesmo a criar ondulações e turbulências. Brinco com as minhas ondulações contra as da água, faço dali o meu mundo. Dali faço vários mundos. A água é um meio de fertilidade infinita, um grande fluido que forma Formas e as desforma ao longo de todo o seu tecido. Entendendo a água, entendo que eu também posso fazer minhas formas, ondulando na água contra as suas ondulações.

Mas fatalmente, um dia, as ondulações me levam pra outro lugar. Um lugar onde a espessura da água é cada vez menor, mais rala; onde surge um fundo que cada vez mais sobe, cada vez mais sólido, comprimindo a água e as formas, fazendo-as mesmo desaparecer. Uma última ondulação me joga contra um fundo que já nem da água precisa mais. Estou encalhado. Esse novo mundo, da Terra, tem uma nova consistência. É sólido, firme, exige sensatez e estabilidade. Exige ciência, fé, previsibilidade. É lá onde os homens moram, todos eles, por mais devoção que tenham à Água. Nenhum homem consegue viver flutuando para sempre; se tenta fazê-lo, então é levado embora da vista dos outros homens - e portanto deixa de existir. Há os que creem num Paraíso da Água, que clamam se mudar para sempre para lá, abandonando tudo o que é firme, voltando ao nascimento de onde eu vim. Eles deixaram a comunidade dos homens.

Mas a Terra, sozinha, por certo é estéril. Tudo o que nasce dela é possível porque a Água a cobre sempre com suas tênues películas que vêm das ondulações espontâneas, ou correndo em meandros pelos pequenos espaços vazios que as pedras desleixadas e brutas largam ao redor de si. O homem que manipula a Água aprende então a manipular a Terra (apenas poucos homens, muito duros e secos, manipulam a Terra por si mesma). Cria na Terra as formas que criou na Água, mas acreditando que então estas formas serão firmes e estáveis como a própria Terra. Os homens vivem da Terra.

Toda essa sabedoria sobre a Terra me veio de pisar nela. Pisar, sustentar o corpo inteiro fixo, a partir de duas pequenas bases, e saber que não se vai girar, não se vai oscilar, não se vai cair. Na Terra se pode cair, bem como se pode levantar. Ascensão e Queda são coisas da Terra, são coisas dos Homens que precisam viver na Terra.

Encalhado, só me liberto com mais ondas, mais tênues véus de água que se interpõem entre mim e a Terra, que me permitem lembrar o movimento. Até a experiencia transcendente de pisar. Mas pisar aqui ainda não é tão firme, meus pés ainda afundam; essa terra ainda é moldável, quase como a água. E a água a molda sempre, trazendo suas ondulações e suas formas, transmutando formas fluidas em formas arenosas, moldando as terras à imagem e semelhança das ondulações da Água. É aqui, nessa Praia do Mundo, que eu devo viver, fazendo todas as formas fluidas das minhas brincadeiras, enquanto piso no fundo e puxo minhas formas para a Terra. Além de formar, agora eu posso construir.

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